Final dos anos 1980 e início dos anos 1990:
1. Desenhe ou fixe uma grade de nove caixas retangulares no chão. Todos os retângulos devem ser iguais e medir, aproximadamente, 6' X 3'.
2. "Defina", aproximadamente, cada rasa. Por exemplo raudra significa raiva, fúria, rugido; bibhasta significa aversão, cuspir, vomitar.
3. Usando giz de várias cores, escreva o nome de uma rasa dentro de cada retângulo [...] Escreva os nomes em sânscrito em alfabeto romano. Deixe o centro ou a nona rasa vazia ou desimpedida.
4. Faça os participantes desenharem e/ou descreverem cada rasa dentro de sua caixa. Ou seja, peça para cada pessoa interpretar a palavra em sânscrito, associar sentimentos e ideias a ela. Você deve salientar que essas "definições" e associações não são permanentes, mas apenas "para o momento atual". [...] Quando se moverem de uma caixa para outra, os participantes podem "andar sobre a linha" na borda das caixas ou pisar totalmente fora da área do Rasaboxes e caminhar até outra caixa. Não há ordem de progressão de uma caixa para outra. Uma pessoa pode voltar para uma caixa quantas vezes desejar, cuidando para não apagar a contribuição de outra pessoa [...].
5. Quando todos estiverem em pé na borda da área da Rasabox, deve ser estabelecido um período para que todos "assimilem" o que foi desenhado/escrito. [...] Eles leem em silêncio ou em voz alta o que está escrito. [...].
6. Pausa. Silêncio.
7. Alguém toma a decisão de entrar em uma caixa. A pessoa assume/faz uma pose relacionada a essa rasa [...]. A pessoa pode fazer a pose de uma rasa ou de todas as oito rasas que possuem nomes. (Lembre-se de que a nona caixa ou caixa central está "vazia") [...]. Esta fase continua até que todos tenham tido pelo menos uma chance de entrar e fazer poses dentro das Rasaboxes.
8. Igual ao item 7, mas agora, além de fazer a pose, o participante emite um som.
Nas etapas 7 e 8 não há "reflexão". Apenas faça a pose e/ou emita um som, independentemente do que esteja "lá" associado à rasa. Mova-se rapidamente de uma Rasabox até a subsequente. Não importa o grau de "beleza", "verdade" ou "originalidade" da pose ou do som. Apenas faça o que foi solicitado. Porém, assim que você estiver fora das caixas, reflita sobre o modo pelo qual você compôs a sua Rasa e como se sentiu em uma Rasa composta. Em outras palavras, comece a explorar a distinção entre sentimentos (experiência) e emoção (expressão pública de sentimentos). Não importa qual deles ocorreu antes. É a pergunta sobre o ovo e a galinha, sem uma resposta correta.[...].
De fato, as primeiras poses/sons têm qualidade de clichês sociais - do "já conhecido" que se encaixou na rasas, por ser superficialmente conhecido. [...] Mais cedo ou mais tarde o estereótipo/arquétipo social será ampliado por gestos e sons mais íntimos, pessoais, peculiares, inesperados. A prática leva a tais escolhas. A estrada do exterior para o interior = a estrada do interior para o exterior.
9. Mova-se rapidamente de uma caixa para outra. São mudanças rápidas, sem tempo para refletir antes [...].
10. Duas pessoas entram, cada uma em sua própria caixa. No início, elas simplesmente fazem as rasas, sem que uma preste atenção à outra. Porém elas logo iniciam um "diálogo" entre as rasas - e passam rapidamente de uma caixa para outra. Então sringara [amor] enfrenta vira [coragem] e vira [coragem] move-se até adbhuta [surpresa]; após um instante, sringara [amor] corre ao longo da linha até bibhasta [nojo] e adbhuta [surpresa] pula até bhayanaka [medo].
Na etapa 10, aparecem muitas combinações novas. Os participantes começam a encontrar coisas que estão longe de serem clichês sociais. Aqueles que estão fora frequentemente se divertem, às vezes ficam assustados ou "emocionados". "Algo" está acontecendo, embora não possa ser expresso em palavras [...].
11. Os participantes trazem textos - ou seja, monólogos de peças conhecidas ou material escrito apenas para o exercício. [...] O texto permanece fixo, mas as rasas se deslocam, sem planejamento prévio. Assim, por exemplo, Romeu é completamente sringara [amor], mas Julieta é karuna [tristeza]; depois, subitamente, Julieta pula para bibhasta [nojo] e Romeu para adbhuta [surpresa]. E assim por diante - as combinações possíveis são quase infinitas. Ocasionalmente, Romeu e Julieta estão na mesma caixa.
12. As cenas são representadas com uma rasa subjacente, sobre a qual porções são representadas em diferentes rasas.
Aqui se começa a ver como uma produção inteira pode ser mapeada como uma progressão de rasas. A progressão podia ser registrada ou improvisada em cada performance. Há ainda mais possibilidades. O exercício Rasabox deve ser interminável. Não se destina a ser um "exemplo verdadeiro" de uma performance baseada no NS [Natyasastra]. Na verdade, o que se obtém com o exercício Rasabox não é parecido com o que se vê em qualquer performance indiana tradicional. Na verdade, o exercício aponta para a possibilidade criativa sugerida pela teoria subjacente do NS. Em vez de ser "um exemplo" daquela teoria, ele "se origina" dela. (SCHECHNER, 2012b, p.147-150).
Essas são as instruções / descrições feitas por Richard Schechner[1] em seu artigo A estética do Rasa (2012b) [2] para apresentar os primeiros passos do Rasaboxes, um treinamento lúdico em permanente desenvolvimento, originalmente concebido para estudantes de performance do departamento de Estudos da Perfomance da New York University (NYU).

Figura 1 - Curso de Palhaço 2013. Momento da investigação de estátuas que representem cada rasa. Todos os jogadores passam por todos os boxes. 27 de abril de 2013. Jogadores: Getsêmane de Oliveira, Gil Rodrigues, Guilherme Muchale, Thiago Braga e Tutti Gonçalves. Foto: acervo pessoal.
O Rasaboxes é um exercício que dialoga com a teoria das Rasas, apresentada no texto sagrado do Teatro - Dança Indiano - Natyasastra, o conceito de Atletismo Afetivo cunhado por Antonin Artaud e com as teorias neurobiológicas de que o homem possui um segundo cérebro em seu sistema gastrointestinal chamado Sistema Nervoso Entérico (SNE). Rasaboxes é "uma espécie de treinamento do SNE para fins artísticos." (SCHECHNER, 2012b, p. 147). São muitas as portas de entrada para começar a falar do Rasaboxes. Comecemos pela neurobiologia.
A performance rásica se vale de uma nomenclatura de sabores associada a sentimentos específicos ditados pelo Natyasastra, e que devem ser mostrados pelo ator para seu público. Se ele as sente ou não é uma outra questão, porém a audiência precisa ser tocada por esses esforços. Já que a experiência do sabor se dá fisicamente no trato gastrointestinal, Schechner foi buscar na neurobiologia algumas explicações para os processos fisiológicos produzidos e sofridos pelo ator e descobriu que o exercício rásico proporciona trabalho a uma parte do corpo que costuma ser deixada de lado, só sendo lembrada quando não funciona bem - o Sistema Nervoso Entérico[3].
Basicamente somos constituídos por um grande tubo processador de alimentos. Lábios e o ânus são o começo e o fim, respectivamente, desse grande sistema que é interligado pelo SNE. Os lábios são sensíveis quando tocados porque são cheios de nervos. O estômago também é repleto de nervos, porém em menor número, que sem o devido treinamento, não sentimos.
O fluxo de informações no nervo vago é muito mais realizado do cérebro para as vísceras do que o contrário, portanto a maioria do treinamento possível desse sistema começa no cérebro com uma ação, uma palavra. Gritar gera aceleração da respiração e dos batimentos cardíacos, aumento da temperatura e contrações musculares que são percebidas no cérebro e transmitidas pelo nervo vago[4] às vísceras. Tais respostas fisiológicas ficam associadas à um comportamento de base fisiológica que é interpretada pelo cérebro como emoção. Tais respostas fisiológicas quando repetidas podem constituir em um padrão que, se for reativado, pode produzir a mesma emoção novamente sem que seja necessária uma causa. Ou seja, o exercício de perceber respostas fisiológicas e compreendê-las como padrões acessáveis, permite no caso do ator, manipular sua fisiologia em algum grau para produzir a emoção desejada sem ter que depender de situações que envolvam tal emoção.
Após muito treino, quando o ator lembrar da sensação de seu grito, rapidamente o corpo responderá com a mesma aceleração cardiorrespiratória, o mesmo enrubescimento das faces produzidos no primeiro grito emitido, e será capaz de transmitir com a mesma intensidade a emoção que esse grito carregava, numa espécie de ativação da memória corporal da emoção. Ou seja, o nervo vago foi capaz de produzir as mesmas respostas fisiológicas sem a estimulação cerebral anteriormente demandada. Partindo desse raciocínio é possível afirmar que cada emoção tem uma marca fisiológica distinta em cada um de nós, que o exercício do Rasaboxes possibilita investigar, na medida em que permite ao jogador percebê-la de forma distinta, longe de suas produções causais.
Normalmente as emoções estão misturadas com outras emoções, desconfortos físicos, confusões mentais. Sentir apenas shmgara/amor durante todo o tempo em que se estiver explorando seu box é extremamente difícil por vários motivos, e um deles se dá pelo fato de sentirmos o amor misturado com medo, tristeza, raiva na vida cotidiana; ou sequer sabermos que o estamos sentindo porque não identificamos conscientemente suas marcas fisiológicas. A investigação fisiológica dos afetos abre inúmeras questões, entre elas a ideia de atingir uma emoção pura. Será possível distinguir cada emoção e isolá-la através da fisiologia? Será que essa busca por pureza das emoções existe e é interessante para o trabalho do ator?
De qualquer forma a investigação no Rasaboxes pode ser bastante dolorosa e surpreendente para o jogador/explorador fisiológico, pois esse estará se deparando com marcas fisiológicas que sempre estiveram ali, mas que nunca foram percebidas e que expõem a complexidade da subjetividade do jogador; ou respostas corporais que antes pareciam corresponder a uma certa emoção e agora se encaixam em outra, surpreendendo o jogador com correspondência corporais até então inusitadas.
É importante acrescentar que ao longo do treinamento e ao perceber cada vez mais sua própria fisiologia, o jogador refaz, desloca, altera essas marcas fisiológicas, ou seja, essas marcas não são fixas, caso contrário não poderiam ser exercitadas com a ajuda do SNE. Elas compõem um território plástico que vai além da fisiologia e cujas características procuro apontar neste trabalho, nas quatro caixas que o compõe.
[1] Richard Schechner se tornou professor, diretor de teatro, co-fundador do departamento de Estudos da Performance da New York University (NYU) e fundador e editor da revista The Drama Review, publicada pela NYU e autor dos livros: Environmental Theater (1973), Performance Theory (1977), The Future of the Ritual (1993), Between Theater and Anthropology (1985) e Performance Studies, An introduction (2002). (ver SCHECHNER, 2003, p.25). Nos anos 1970 fundou o The Performance Group e em 1992, fundou juntamente com Michele Minnick, Paula Murray Cole e outros artistas o East Coast Artists (ECA) que tem o Rasaboxes como base de treinamento para reinventar textos teatrais clássicos e desafiar as noções convencionais de teatro contemporâneo e do treinamento de performance. A ECA iniciou seu repertório em 1993-1994 com Faustgastronome e mantêm desde 2011 o espetáculo Imagining O. Disponível em <www.eastcoastartists.org> Acesso no dia: 21/03/2014.
[2] Os nomes sânscritos foram transcritos como aparecem no texto, porém após a defesa dessa dissertação realizei a oficina Navarasa com Andrea Prior, atriz e bailarina especializada em danças clássicas indianas em São Paulo e descobri que algumas dessas palavras são soletradas de forma diferente no alfabeto ocidental. Por conta dessa diferença as palavras bibhasta e sringara serão alteradas respectivamente para bibhatsa e shmgara em todo o trabalho. Disponível em <http://www.espacorasa.art.br/o-rasa/a-palavra-rasa/> Acesso em 15/10/2015.
[3] Ainda na fase de ovo, no terceiro dia de gestação, o embrião, que antes era basicamente um círculo, cria um cume que cresce rapidamente. No sétimo ou oitavo dia o pequeno cume, ou crista neural, cheia de nervos, ocupa um terço da célula embrionária, que ainda não apresenta qualquer estrutura reconhecível, e se divide em dois. Cerca de 60% dessa crista se tornará o cérebro, 10% constituirão os nervos na periferia de nosso corpo, que se ligarão a espinha para transmitir ao cérebro os estímulos do mundo externo. Os últimos 30% constituem o Sistema Nervoso Entérico (SNE), um conjunto de feixes de nervos ligados ao esôfago, estômago, intestinos e que por sua vez se ligam ao cérebro não pela espinha, mas por outro caminho, o nervo vago. (SCHECHNER, 2012a. Tradução nossa).
[4] Parte da referência para realizar esse texto veio da transcrição da palestra ministrada por Schechner sobre métodos de treinamento de ator realizada na UNIRIO em 2012. O exemplo do grito também é dado por ele na palestra.
