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Entre 600 A.E.C. (Antes da Era Comum) e 200 D.E.C (Depois da Era Comum)[1]:

Os grande brâmanes, durante um intervalo dos trabalhos de Bharata[2], interrogam-no como teria nascido e do que fala o tratado de teatro que este havia criado. Bharata conta-lhes que no tempo antigo grandes deuses suplicaram a Brahma que criasse um "objeto de representação" (BORIE; ROUGEMONT; SCHERER, 1996, p. 33) que evocasse os quatro Vedas e que fosse acessível a todas as castas. Brahma medita e ao recordar dos quatro livros sagrados cria um quinto, o Natyasastra, que...

 

[...] mostrará o caminho em direção à virtude, à riqueza, à glória, conterá bons conselhos morais, guiará os homens do futuro em todas as suas ações, será enriquecido pelo ensinamento de todos os tratados, e passará em revista todas as artes e todos os ofícios." (BORIE; ROUGEMONT; SCHERER, 1996, p. 33).

 

"Natya significa dança e, por consequência representação, mímica acompanhada de música e de palavras cantadas." (BORIE; ROUGEMONT; SCHERER, 1996, p. 32). A representação é encarada como o resultado complexo da mistura de mímica, dança, literatura e música num espaço sagrado chamado Kuttampalan, cujas medidas e proporções teriam sido concebidas pelo próprio Visvakarma, o arquiteto universal, e protegido pelo deus Indra. Como na maior parte do oriente, na Índia também não há distinção entre teatro e dança, espetáculo artístico e culto religioso, portanto o ator é também um dançarino, um cantor e um sacerdote.

 

Sastra é o termos genérico para um texto sagrado ou semi sagrado na tradição hindu.  Natyasastra, portanto é um tratado, com cerca de trinta capítulos, que define de forma extremamente precisa a organização teatral. Os detalhes contidos no tratado de Bharata englobam todos os aspectos da produção cênica e vão das dimensões adequadas dos Kuttampalan, às épocas para as representações de cada estilo, maquiagem, figurinos, personagens tipo e o registro da representação. Um dos conceitos apresentados é Natyadharmi ou "comportamento do homem quando em situação de representação dramática." (RIBEIRO, 1999, p.29). Em oposição a Lokadharmi ou comportamento cotidiano, Natyadharmi define o registro artificial das performances dos atores não como estilo de representação, mas como premissa para a inauguração do evento teatral.

 

O elemento essencial ao Teatro é Natyadharmi.[...] Como trabalha com a consciência de que se encontra naquele momento em uma situação dramática artificialmente construída, o ator que busca estar "natural" em cena instaura o absurdo. Por isso a busca da "naturalidade" é estranha ao Teatro clássico indiano, onde a "artificialidade" é um princípio básico e essencial. Quase todas as formas de Teatro do Oriente buscam a artificialidade e a desumanização como linguagem. (RIBEIRO, 1999, p.30. Grifos do autor)

 

O Natyasastra apresenta no capítulo 6 a característica fundamental que anima a performance dos atores e os ajuda a alcançar a artificialidade desejada - Rasa.

 

Não existe natya sem Rasa. A Rasa é o resultado cumulativo de vibhava [estímulo], anubhava [reação involuntária] e vyabhicari bhava [reação voluntária]. Assim como, por exemplo, quando vários condimentos e molhos, ervas e outros materiais são misturados, experimenta-se um sabor, ou quando a mistura de melaço com outros materiais produz seis tipos de sabores, junto com os diferentes bhavas [emoções], os sthayi bhava [emoções permanentes experimentadas internamente] tornam-se Rasa.

Mas o que é essa tal de Rasa? Eis a resposta. Como ela é prazerosamente saboreada, chama-se Rasa. Como acontece esse prazer? As pessoas que ingerem alimentos preparados com diferentes condimentos e molhos e são sensíveis, desfrutam dos diferentes sabores e sentem prazer; do mesmo modo, espectadores sensíveis, após apreciarem as várias emoções expressadas pelos atores através de palavras, gestos e sentimentos, sentem prazer. Esse sentimento dos espectadores é explicado aqui como sendo as Rasas de natya. (Bharatamuni, 1996 apud SCHECHNER, 2012b, p. 133. Grifos do autor).

               

 

É interessante perceber que essa estética é compartilhada não apenas por quem produz a cena, mas por quem a frui. Rasa é produzida pelo ator misturando estímulo, reações voluntárias e involuntárias e emoções em seu desempenho. Rasa também é produzida pela plateia que recebe sensivelmente palavras, gestos e emoções e as transforma em uma experiência de prazer sensual.

 

Rasa pode ser traduzida literalmente por sabor ou deleite. "Segundo o Natyasastra, a arte do ator deve ser apreciada pela habilidade com que ele delineia o rasa ou rasas de sua interpretação [...]." (RIBEIRO, 1999, p. 63). Na tradição teatral indiana Rasas se converteram em códigos faciais específicos (ver RIBEIRO, 1999, p. 64 a 68) que compõem, junto com os Mudras (alfabeto gestual, realizado com as mãos), o conjunto expressivo chamado de abhinaya (traduzido por "educar"), responsável pela comunicação não verbal realizada pelo ator indiano.

 

Natyasastra define nove rasas fixas que devem ser treinadas minuciosamente. São elas: Shmgara (amor / o erótico), Hasya (riso / o cômico), Karuna (tristeza / pena / compaixão), Raudra (raiva), Vira (coragem / virilidade), Bhayanaka (medo), Bibhatsa (repugnância / nojo), Adbhuta (maravilha / surpresa) e Shanta (graça / paz).[3] Historicamente sabe-se que o tratado fornecia oito rasas porém, não se sabe porque, Abhinavagupta, estudioso dos textos e fragmentos do sastra, acrescentou uma nona rasa, shanta (felicidade / paz) a mais de mil anos atrás, provavelmente por conta da influência do Budismo na Índia.

 

Ao longo do séculos rasa foi traduzida por sabor e sentimento e isso faz pensar quais seriam as ligações entre o sentido do paladar e as respostas psicofísicas do corpo. Haveria outras palavras que traduzissem rasa? Os nove termos sânscritos também possuem uma diversidade de traduções que formam um campo semântico. Como esse campo semântico pode ajudar a compreender melhor as ligações entre sabor e sentimento? E por fim, como colocar no corpo uma sensação tão pessoal e difícil de nomear como o sabor? Essas questões são retomadas e pormenorizadas em Sabdabox - Caixa de palavras e Angambox - Caixa de corpos.

 

[1] Esse é o período afirmado por Richard Schechner no artigo A Estética do Rasa (2012b). Almir Ribeiro afirma que o texto teria sido escrito por volta de 200 a.C. (1999, p. 29) e a The Cambridge Guide to Theatre (1988, p. 472) estabelece um período entre 200 a.C. e 200 d.C.

[2] "Bharata-muni é uma figura mítica e histórica, o nome do autor ou compilador de um compêndio pormenorizado sobre as origens mítico-religiosas e as práticas de natya, uma palavra em sânscrito difícil de ser traduzida, mas que pode ser reduzida a dança, teatro e música." (SCHECHNER, 2012b, p. 130).

[3]As traduções presentes nos parênteses foram retiradas do artigo Rasabox - O ator como atleta das emoções (COLE; MINNICK, 2011). Já o artigo de Schechner (2012b) apresenta as seguintes traduções: Sringara (desejo / amor), Hasya (humor / riso), Karuna (piedade / pesar),  Raudra (raiva), Vira (energia / vigor), Bhayanaka (medo / vergonha), Bibhasta (aversão), Adbhuta (surpresa / admiração) e Shanta (felicidade). Apesar de próximas, as traduções apresentam algumas diferenças que serão discutidas ao longo deste trabalho.

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