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Em abril de 2013:

                              

Fortaleza, 27 de abril de 2013.

Começávamos mais um dia de aula. Contamos pé ante pé, quinze passos na horizontal e quinze passos na vertical para demarcar no chão nosso espaço de trabalho. Com fita crepe traçamos um grande quadrado sobre a madeira.

- Meu deus, preciso comprar mais fita pra próxima aula!

Feito o quadradão, passamos a medir dois de seus lados em três partes para podermos fazer correr a fita e criar nove quadrados iguais e menores, como num tabuleiro de xadrez. Um observador desatento julgaria que estivéssemos brincando. Alguns alunos já desenrolavam as oito cartolinas com as rasas desenhadas na aula passada e vão colando-as nas quinas dos quadrados.

 – Mudem os lugares das cartolinas!

Hoje os meninos colocaram a raiva distante do medo. - Isso é bom, penso comigo mesma.

Terminado o tabuleiro peço que todos se aqueçam e quando se sentirem prontos, podem voltar a explorar as rasas pelas respirações estudadas na semana passada.

 – Hoje faremos estátuas. A partir das respirações, que formas mostram no espaço o nojo, o amor, a raiva, a surpresa, a coragem, a tristeza, o riso e o medo? Procurem explorar bem os espaços dentro dos quadrados, com seus planos e direções. O trabalho é individual, ok!

Cada um se aquece do jeito que sabe e pode. - Será que esse é um bom começo? Outro pensamento.

Timidamente eles vão se aproximando da borda do tabuleiro, escolhendo por onde querem começar. Alguns respiram fundo e espantam a cara de medo. De repente o pulo! Uma vez dentro do quadrado é preciso dar conta dele. Respiração!

- Sejam precisos! Como é a respiração do estado escrito no papel hoje? O que ficou da aula passada? Percebam suas escolhas, pois vocês terão que voltar a elas depois!

Todos pulam. Pulam pra dentro. Pulam pro quadrado ao lado. Pulam pra fora, cansados, confusos.

Gradativamente as respirações vão trazendo vetores para os corpos. Pesos, posturas. Ninguém procura o chão ou o ar. Ninguém se torce ou se contorce. Ninguém arrisca. Muitos rostos e braços. O que pode o corpo? Quanto pode o corpo?

- Lembrem do que vocês estão fazendo porque nós vamos repetir as estátuas!

Pouco a pouco os alunos que fizeram as oito estátuas vão pulando pra fora do tabuleiro.

Água, banheiro, silêncio.

Peço que um voluntário entre no tabuleiro e mostre suas estátuas enquanto os outros observam de fora. Anuncio também que faremos duas rodadas individuais, uma para mostrar aquilo que foi construído, e outra, com minha interferência, para mexer nas estátuas.

Sempre um constrangimento. Quem é capaz de mostrar seu corpo? Um corajoso levanta (por sorte temos alguns na turma). Respira fundo, espanta a cara de medo e pula. Faz a estátua. Cinco segundos e pula para fora do tabuleiro. O gesto se repete sete vezes.

- Agora vamos trabalhar!

O corajoso se preocupa e escolhe uma rasa pra começar. Ele se coloca na frente do quadrado do medo. Pula. Faz.

- Humm! Onde estão suas pernas? Como são as pernas no medo? (tempo) Como é o quadril, a bunda, no medo? (tempo) É comum dizermos que alguém se cagou de medo. Se alguém se caga é porque seus intestinos se reviram quando há o medo. Quem tem cu tem medo! (risos) O medo é muito fisiológico. (tempo) E os pés? Como são os pés no medo? (tempo) Suas escápulas não estão no medo! (tempo) Lembre da respiração. Recupere ela pra você não se perder. (tempo) Isso! Mais! Precisamos achar o 100% do medo. Do fio de cabelo até o dedo mindinho... Ok! Melhor. Próxima rasa.

As instruções se repetem tentando tornar mais clara e urgente a demanda que aqueles pedaços de espaço evocam e de que economia de energia se fala quando praticamos o Rasaboxes. Surgem perguntas como:

- De que amor eu estou tratando? Do erótico, do fraternal, do amor à Deus?

- O riso é de quem ri ou de quem provoca o riso?

- Não misture nojo com medo. Afinal você tem nojo ou medo de barata? Qual é o quadrado mais apropriado para pensar em baratas? Do que você tem medo e do que você tem nojo?

Essas são apenas algumas das questões que surgem nesse momento do trabalho. O aluno corajoso termina exausto seu percurso no tabuleiro. Eu também estou exausta [...].

A aula termina sem que tivéssemos visto todos os trabalhos. Os momentos individuais são tão minuciosos que exigem muito tempo e cuidado. O restante da turma fica pra próxima aula. Alguns querem falar sobre a experiência, mas eu interrompo achando melhor guardar as impressões para momentos menos eufóricos. Falaremos, depois.

- Lembrem do que fizeram. Não joguem fora o trabalho de vocês. E por favor, não corram uma maratona ao saírem daqui, rsrsrs! Nós mexemos muito e bem intensamente com nossos corpos. Fiquem atentos a coisas como tontura, diarréia, sono agitado, ok. Pode ser resultado daqui. Se cuidem! Até a próxima, 13h em ponto!

Esse relato foi retirado de minhas impressões da segunda aula de Rasaboxes ministrada por mim para a turma do curso livre de Palhaços, realizado todos os sábados, de março a dezembro de 2013 no Café Teatro das Marias[1], e descreve o segundo dia dos cinco que compuseram essa experiência. Dentre tantas, uma coisa nesse relato deve ser comentada: a descrição de uma nova etapa na aproximação do Rasaboxes.

A experiência descrita é uma responder para as angústias surgidas nos embates em sala de aula e foi criada para ajudar os alunos a compreenderem a quantidade de energia necessária para povoar o tabuleiro e para que eu mesma pudesse mapear seus esforços. Essa etapa não é sugerida pelo criador do Rasaboxes, Richard Schechner, pela colaboradora de Schechner e também ministrante de Rasaboxes, Michele Minnick ou pela Profa Dra. Ana Achcar, que me apresentou o tabuleiro durante minha formação. 

Em Schechner a passagem da etapa de construção de estátuas ou poses para a etapa de movimentação nas rasas se dá pelo aumento da velocidade de ocupação e trânsito de uma rasa para outra. Ou seja, as poses ganham movimento pela velocidade com que são realizadas no tabuleiro. Minnick incentiva os jogadores a passarem de um box a outro já no primeiro dia, tentando preservar ao máximo a pureza[2] de cada rasa. Em todos os casos espera-se que com o tempo o participante vá compreendendo aquilo que ele mesmo produz, saindo das figuras estereotipadas para composições mais complexas.

Normalmente os corpos dos alunos-performers se mostram hipotônicos, realizando gestos sob os registros cotidianos da frontalidade, do bipedismo, na parte superior do corpo. A dissociação entre respiração e gesto é comum, o que acaba por produzir estereótipos na corporificação das rasas. A grande maioria dos jogadores nunca pensou sobre o que sente e qual a diferença entre o que sente e o que mostra. Os jogadores iniciantes lidam com uma grande quantidade de estímulos internos e externos e isso gera confusão, frustração e vergonha.

 

Realizar um trabalho individual, trazendo feedbacks do que está sendo construído e transmitido no espaço, dá ao jogador a dimensão de quanto ele está ou não acessando suas musculaturas. Na organização didática sugerida pelos demais autores a percepção dos gastos energéticos acaba se dando mais tarde. É mais tarde que o jogador compreende que precisa "trabalhar" mais para conseguir resultados expressivos no espaço. Com a etapa individual de feedbacks entre o momento da realização de estátuas e de movimentação livre pelas rasas o jogador, de acordo com minhas impressões, consegue identificar os lugares a serem mais trabalhados no corpo, as distribuições menos habituais do peso corporal e do espaço ao seu redor.

A experiência de presentificar/mostrar a rasa com o corpo todo, não misturar uma rasa com outra e ter a agilidade necessária para percorrer o tabuleiro com precisão são três habilidades que o jogador de Rasaboxes precisa adquirir com o tempo de prática. Tais habilidades exigem um gasto de energia durante as experimentações que precisa ser, aos poucos, percebida e administrada. É preciso que ele sinta e perceba isso tão materialmente quanto os gestos que tenta realizar no espaço. A administração energética deve, de certo modo, ser uma quarta habilidade que permita que ele realize bem as outras três.

Essa etapa, como mostra a descrição, não é realizada pela imitação de nenhum modelo, mas sim pelo atiçamento dos lugares no corpo que não apresentam qualquer ativação. Onde estão suas pernas? Como são as pernas no medo? Como é o quadril, a bunda, no medo? Esse atiçamento pode não produzir boas poses, mas faz lembrar dos órgãos e musculaturas que normalmente não implicamos nos fazeres cotidianos. Isso torna a tarefa de realizar as poses algo mais complexo, mais inacabado e mais sutil, pois a consciência corporal se adensa mais e mais a cada passagem pelo tabuleiro.

Essa nova etapa didática traz para a discussão do trabalho do ator questões como: o estabelecimento e manutenção de um regime atencional e cognitivo que dê conta dos desafios psicofísicos e espaciais do treinamento; a construções de um vocabulário que responda à esses desafios; a reflexão sobre as imagens corporais dos afetos e como elas são construídas ou desconstruídas no tabuleiro. Palavras como atenção, energia, clichê são mais uma vez evocadas para discutir o trabalho do ator no Rasaboxes.

[1] Espaço cultural situado no bairro da Praia de Iracema, na cidade de Fortaleza. Além do curso de Palhaço, outra experiência formativa será bastante evocada ao longo do trabalho, o treinamento com o Coletivo Escambau, grupo de atores oriundos do Curso de Teatro da UFC que, enquanto realizava a etapa de pesquisas práticas desse trabalho, me convidou para ministrar um treinamento de Rasaboxes. Os atores já conheciam o treinamento por isso pude propor-lhes algumas questões como: a criação de uma cartolina para shanta (que rendeu algumas cartas), a inclusão do box central nas improvisações, o deslocamento de shanta do centro e a realização de um exercício cênico improvisado no tabuleiro.

[2] A palavra pureza é usada por Minnick e Cole (2011, p.12) no sentido de não tentar misturar qualidades corporais encontradas num box em outro durante o trabalho inicial, porém isso se mostrou extremamente difícil para os alunos iniciantes com quem tenho lidado.

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