Diz que aquelas palavras são traduções de outras, em sânscrito, vindas da tradição do teatro indiano. Explica que cada quadrado corresponde a uma rasa, que em sânscrito significa sabor. Rapidamente associo rasa aos estados psicofísicos que temos trabalhado nos exercícios de improvisação com máscara. Lápis de cores, canetinha e gizes de cera são espalhados no chão e Ana pede que escrevamos ou desenhemos o que primeiro vier a nossa mente em cada um dos oito espaços em branco. Explica que o exercício é inspirado no Atletismo Afetivo de Artaud e meus olhos brilham.
Após preencher as cartolinas, vemos e comentamos os resultados finais. Cada um tinha feito sua contribuição e agora os espaços em branco tinham se tornado um mosaico repleto de informações e impressões afetivas que iam além da palavra que nomeava o papel. Colamos as cartolinas nos vértices de cada quadrado com mais fita.
O quadrado do centro, ficou vazio. Sem cartolina. Ana disse que aquele espaço era reservado para a rasa de Shanta, paz, e não tinha representação.

Passamos à segunda parte do exercício: investigar as características das respirações de cada rasa, entrando apenas para respirar em cada um dos quadrados, sem realizar qualquer movimento. A passagem para o próximo quadrado deveria ser feita por fora do tabuleiro. Deveríamos memorizar cada uma das respirações, seus ritmos, onde se localizavam, que quantidade de ar movimentavam. Lembro o quanto isso era cansativo e ao mesmo tempo instigante. Quanta energia produzida com tão pouco. A cabeça parecia pesar cem quilos. O corpo inteiro formigava e produzia espasmos. Era preciso sair do quadrado após um tempo, pois a quantidade de impulsos, memórias, sensações, vindas apenas da respiração, era monumental e hipnótica. Para passar à próxima rasa era preciso voltar ao zero, sair do tabuleiro. Apesar de não possuir cartolina, Shanta também precisava ser investigada. Não lembro se a deixei por último, mas lembro de, ao entrar no quadrado central, sentir falta da cartolina. Achava o espaço muito vazio, muito aberto a qualquer coisa, enquanto os outros eram mais diretivos.
O terceiro momento constituía em fazer estátuas do que achávamos que fosse a materialização das rasas no espaço. Ana acrescenta que as estátuas deveriam surgir da respiração. Isso era bom e ruim. Tanta coisa aconteceu dentro de mim! Será que conseguirei transmitir no corpo e no espaço tudo que a respiração no estado me proporcionou? Fazia quase três anos que eu vinha exercitando as ordens espaciais e isso ajudou[2]. Além dos esforços de me concentrar no que achava que eram as rasas no espaço, havia a preocupação de não se deixar levar pelo trabalho do outro. Até então a turma toda ocupava de forma caótica o tabuleiro, num exercício ao mesmo tempo coletivo e individual.
Após criarmos as estátuas foi pedido que passássemos por todas mais rapidamente, agora em grupos menores. Nós nos assistíamos e era possível ouvir algumas risadas a partir do trabalho de alguns de nós, afinal éramos uma turma de palhaços em formação. Lembro da sensação de ser olhada naquela situação. Não era fácil, mesmo estando acostumada com o hospital e a exposição que o nariz vermelho demanda. Aquela exposição era um pouco diferente. Aquilo vinha da minha respiração. Era íntimo. Construir tudo aquilo e ainda olhar os demais, ser olhada por eles era revelar algo que nem mesmo eu sabia que tinha e que poderia oferecer aos outros, porém nada disso tem um sentido pejorativo ou diminuidor do que fazíamos, pelo contrário. Essa exposição jamais imaginada, se convertia em potência, quase uma provocação, para realizar mais.
A quarta etapa de aproximação do tabuleiro consistia em dar movimento e som às estátuas criadas. Lembro da sensação de querer dar conta das palavras escritas na cartolina, de querer sentir plenamente para poder externalizar esse sentir com toda a potência possível. Lembro que essa era uma de minhas questões durante toda a formação acadêmica - como me colocar 100% em trabalho e como converter essa dedicação plenamente na construção corporal. Lembro inclusive de ser advertida de estar sendo trágica. Mas como não ser trágica diante de tanta intensidade? Como dosar minha energia, meus ímpetos para responder à especificidade do treinamento de palhaço, que exigia uma outra abordagem dos esforços empreendidos para realizar as rasas? Talvez tamanho entusiasmo dissesse respeito à minha experiência com as palavras de Artaud fora dali[3]. Nosso objetivo era passar de uma rasa a outra com precisão corporal, de forma imediata, e improvisar percursos afetivos com o outro. Isso ficou mais claro quando vestimos o nariz para ocupar o tabuleiro e jogar em dupla, etapa seguinte do exercício realizada no segundo dia de treinamentos.
Nessa etapa dois participantes deveriam interagir dentro do tabuleiro, a partir das rasas dos boxes em que se encontravam. Isso exigia uma atenção imensa, pois tinha que estar atenta a minha rasa, em realizá-la com precisão para o outro, e atenta ao parceiro e ao que ele me propunha. Tinha que estar atenta também ao momento de mudar de rasa e que nova rasa seria. Tudo isso dependia do improviso que conseguíamos ou não realizar. O que fazer quando eu estou no riso e o outro no medo? Antes de mais nada, recuperar respiração, níveis, direções e lugares, movimentos, depois oferecer isso ao outro com o máximo de energia possível e buscar receber o que o outro me traz, sem mudar de rasa. Travar um diálogo com o medo do outro sem cair no medo também. Ficar com o outro sem ser o outro. Ser diferente e estar junto do outro ao mesmo tempo. Rio de alguém amedrontado, imito seu medo com escárnio, rio grotescamente para causar mais medo até acontecer alguma coisa que exija que mudemos de estado e assim prosseguimos num jogo sem fim.
Com o nariz vermelho esse jogo fica ainda mais intenso, pois o palhaço não precisa justificar psicologicamente suas mudanças de estado, pois não é um personagem psicologizado[4], e, além disso, faz de seu estado psicofísico um problema ou dilema no espaço que precisa ser resolvido com o outro (parceiro e plateia). Isso lhe dá o impulso para transitar livremente pelo tabuleiro, para desenvolver esse problema infinitamente com o outro e de acordo com a necessidade do jogo que se estabelece entre eles. Daí surgem as situações mais inusitadas e cômicas, o que só gera mais vontade de continuar jogando. As rasas definem os percursos do jogo e a qualidade da relação entre os jogadores e, ao mesmo tempo, o jogo e a relação definem que rasas devem ser corporificadas. Assim como o palhaço, o jogador de Rasaboxes se afirma pelo agir, e esse agir afirma ainda mais o jogador no tabuleiro.
A dupla não pode deixar o jogo morrer, seja pela falta de energia e inventividade de construir ações nos estados, seja pelo impasse que certas situações podem vir a produzir, como por exemplo, uma dupla se amando no quadrado do amor. É cômico perceber como a dupla descobre o que é o amor entre si, mas algo tem que acontecer. É na ação produzida, ao realizar o estado, que o jogo se realiza. Sentir sem agir não produz nada porque não mostra nada com que se relacionar, assim como agir sem sentir coisa alguma acaba por tornar o jogo desnecessário. Age-se porque se sente e porque se sente algo, age-se. Pensar assim abole qualquer separação entre o que vivemos e o que fazemos, entre o que sentimos e o que mostramos, trazendo para o ator maior permeabilidade entre as questões que se efetivam no espaço e aquelas que se efetivam no corpo. Uma instância penetra a outra e não se torna mais possível falar em trabalho corporal sem falar também em trabalho espacial. As ideias de corpo como interioridade e de espaço como exterioridade se tornam estanques demais para dar conta do que acontece no tabuleiro.
O próximo passo, no terceiro dia de aula, consiste em lembrar ou trazer decorada a letra de uma música e improvisá-la dentro do tabuleiro como falas para situações em dupla. Num primeiro momento se investigava individualmente os efeitos vocais produzidos nas rasas e depois os improvisos aconteciam. Não lembro mais que música havia trazido para essa aula, mas em todas as vezes que esse momento chegava, fosse como jogadora ou ministrante, os resultados eram hilários, pois as letras perdiam seus significados iniciais e serviam a uma circunstância completamente diferente das esperadas. "Carinhoso" no box da raiva ou "Carcará" no box do amor.
O mais interessante era ver a palavra ser recolocada em outro contexto, ser esvaziada de seu significado inicial e ganhar outro, proporcionado pela corporificação da rasa. A produção "artificial" dos estados psicofísicos esvaziava qualquer traço de intencionalidade nas ações dos jogadores. As ações, palavras e movimentações produzidas não tinham intenção de criar ou significar nada. Elas esbarravam na produção de sentidos na medida em que se detinham apenas na produção de corporeidades.
Objetos, trazidos por Ana e pela turma, foram introduzidos no tabuleiro. Nós trouxemos objetos que usamos no hospital. Deveríamos incluir o objeto na ação realizada dentro do quadrado, fosse para se relacionar com um parceiro em outro box, fosse para se relacionar com o próprio objeto como parceiro. Esse momento era bem difícil, pois exigia objetos bons o suficiente para construir uma relação. As vezes o objeto cabia para o jogo com uma rasa, mas não com outra. A obrigatoriedade de usá-lo em todo o percurso pelo tabuleiro me preocupava e dispersava, o que me fazia perguntar o que era um objeto bom o suficiente para tal trabalho.
Depois de tantos anos, recordar tudo o que aconteceu durante minhas primeiras experiências com o Rasaboxes se tornou uma narração atravessada de muitas impressões e temporalidades, pensamentos que só consigo formular hoje com lembranças de dificuldades passadas, porém o impacto desses dias, e dos outros treinamentos realizados posteriormente, foi imenso e produziu perguntas que vivem ainda hoje, tais como: Sabor é uma linda forma de se referir a estado, mas porque, quando se fala em sentimento ou emoção, não fico tão satisfeita? Afinal rasa é o que eu sinto ou aquilo que eu faço o outro sentir? Os únicos objetivos do Rasaboxes são realizar as rasas integralmente no corpo e mudá-las na medida em que se muda de box. O que é viver integralmente a rasa? Como saberei que cheguei ao 100% de sua expressão se minhas impressões dela mudam a cada dia de trabalho? Que ação é essa produzida no sentir para mostrar um estado? Entre o sentir e o mostrar, o que se passa?
A tradução é um procedimento importante no início do jogo para a compreensão do que é rasa, porém a tradução também é uma criação autônoma, portanto será que posso criar outro Rasaboxes traduzindo as rasas de outro jeito? Será que mudar de tradução ocasiona em mudar a experiência corpórea? O que se passa quando assistimos às improvisações, já que a experiência é tão forte para quem está fora quanto para quem está dentro dos boxes?
E o que são os corpos fora do tabuleiro, na fita que separa um box de outro e em shanta? O corpo "zera" quando se está fora do tabuleiro? O corpo "zera" quando está em shanta? O que é "zerar" no Rasaboxes? Porque shanta não recebe uma cartolina e porque é tão difícil estar dentro dela? Porque tenho a impressão que shanta é diferente das demais rasas?
São muitas as questões levantadas pela atualização dessa primeira experiência. Ao longo do trabalho elas retornam e derivam em Sabdabox - Caixa de palavras, Antarabox - Caixa de espaços e Angambox - Caixa de corpos.

[1] Essa apresentação foi feita no contexto das aulas de palhaço da disciplina optativa Jogo e Relação, oferecida pela Profa. Ana Achcar (Ana Lúcia Martins Soares), até então mestre, aos alunos da Escola de Teatro da UNIRIO. A disciplina se propunha introduzir a linguagem do palhaço na perspectiva da máscara, como treinamento para o ator e tinha como desdobramento a atuação em hospitais através do Programa de Extensão, Ação e Pesquisa Enfermaria do Riso. Mais tarde a disciplina se tornou também um laboratório prático para a experimentação e sistematização de um método de formação de palhaços para hospitais dentro das pesquisas de doutorado da mesma professora. O Rasaboxes foi realizado pela primeira vez nessa data e passou a compor o programa de formação desde então. Ingressei na disciplina em 2002.1, comecei a frequentar o Hospital Universitário Gaffré & Guinle como palhaça em 2004.1 e permaneci treinando e atuando até o fim de 2009. A descrição que se segue foi produzida a partir de minhas lembranças e não consta em nenhum diário ou documento da época, portanto é um exercício livre de diálogo entre as minhas experiências passadas e as marcas que elas deixaram no hoje. Nem a professora nem os alunos envolvidos na atividade podem corroborar inteiramente esse relato.
[2] As ordens espaciais são desenvolvidas ao longo de toda a disciplina Jogo e Relação no exercício Equilíbrio do espaço, cujo enunciado é: "Os participantes se distribuem pelo espaço. Ao sinal, se deslocam simultaneamente com o objetivo de ocupar os lugares vazios. Para isso, cada um deve utilizar planos diferentes, direções diversas e vários lugares do espaço. Esta movimentação se baseia no exercício de três ordens espaciais: lugar, plano e direção do movimento. O exercício pode ter duração de até 20 minutos e ser realizado com ou sem música." (ACHCAR, 2007, p.130). O exercício tem como objetivo estabelecer uma relação de afetação com o espaço a partir da ideia de materialidade do mesmo. "A ideia de espaço ocupado na sua densidade se desenvolve através do exercício, no corpo, de um lugar, um plano e uma direção para o movimento. As noções de lugar, plano e direção são experimentadas na perspectiva de elementos construtores da densidade do espaço através do movimento do corpo. Plano trata da dimensão espacial que, aqui, nesta prática, estabelece-se arbitrariamente dividindo-se o espaço horizontalmente em três zonas: baixa, média e alta. Direção é o sentido do impulso que gera o movimento, para onde ele se desloca no espaço. Lugar é o que estabelece a localização do corpo no espaço. O exercício treina uma forma específica de ver o espaço, afinada com um dos princípios gerais que regem este programa de capacitação: vivenciar o espaço na noção de massa onde o corpo insere suas ações." (ACHCAR, 2007, p. 130-131. Grifos da autora). Essa visão do espaço como uma massa viva e modificável vai ao encontro da noção de espaço vivo criada por Rudolf Laban (ver RENGEL, 2008, p. 39). Para fazer jus a tal referencial teórico, a noção de plano foi substituída pela noção de nível, termo utilizado por Laban para a exploração das diferentes alturas dos corpos e objetos (ver RENGEL, 2008, p. 42). Portanto as ordens espaciais - nível, lugar e direção - são utilizadas nesse trabalho, especialmente em Antarabox - Caixa de espaços.
[3] Naquela época ainda fazia parte do grupo de pesquisa O ator no Teatro da Crueldade, também na Escola de Teatro da UNIRIO, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Cristina Brito. No grupo investigávamos alguns elementos da poética artaudiana como a Metafísica, a Peste e a Crueldade como elementos metodológicos para o treinamento do ator da Crueldade. Tive acesso ao conceito de Atletismo Afetivo também durante esse período. O grupo realizou três montagens sob a alcunha Mulheres de Artaud entre 2001 e 2006.
[4] Aqui me refiro a coerência e linearidade de ações que um personagem construído com bases psicológicas precisa ter para ser verossímil.