Em 1965:
Quando eu era aluno nos anos 50 e 60 comecei a ler Artaud, que muitos de vocês devem ter lido, e uma das coisas que aparece na obra de Artaud é que o ator é um atleta das emoções. Eu não fazia ideia do que ele quis dizer, mas gostei. [...] No final dos anos 60 conheci uma pessoa, que ainda trabalha, Yvonne Rainer que é bailarina e teórica de dança e foi ela que me falou que a mente é um músculo. E eu não compreendi também. Mas essas duas frases, "a mente é um músculo" e "o ator é o atleta das emoções", essas ideias de fisicalizar a ação, fisicalizar o pensamento cognitivo, ficaram comigo e eu precisei investigar mais. Ok. Eu estava interessado em fisicalização... então Artaud, Yvonne Rainer. (SCHECHNER, 2012a, minutos 9'30 e 10'30. Tradução nossa).
O que é ser um atleta das emoções? Se a mente é um músculo, que tipo de movimentos ela pode fazer e como ela pode ser incluída no atletismos das emoções? A mente e as emoções estariam num mesmo nível de experiência? Como fisicalizar o pensamento? O Rasaboxes é fruto dessas questões, mas o que a dança poderia ter a ver com tudo isso?
A mente é um músculo ou The Mind is a Muscle é também o nome da obra mais importante de Yvonne Rainer[1] na dança. Trio A é a parte mais celebrada dessa composição coreográfica, onde Rainer experimenta concretizar de modo original e imprevisível os desejos de ruptura com a dança pós-moderna de Merce Cunningham[2]. A geração de Judson Church, a qual fazia parte, queria abolir a dança como espetáculo, como monumentalidade. Queria eliminar hierarquias tanto institucionais (mercado das artes) quanto corporais (proezas virtuosísticas, valorização de algumas partes do corpo) e coreográficas (variações, fraseados com desenvolvimento e clímax). Buscava-se a igualdade das partes e das energias para movê-las, bem como do desempenho neutro, da literalidade, da ação enquanto tarefa em escala humana (ver GIL, 2009, p.151, 156 - 157).
[...] eis um corpo que se abaixa, levanta, vira, torce, desloca como um corpo qualquer, e todavia os seus gestos estão longe de ser triviais. Tudo é banal e tudo é estranho. O tempo dos gestos é engendrado pelo movimento do corpo, como se nenhuma defasagem com um tempo exterior, objetivo, viesse quebrar a conivência mais íntima entre o movimento (a criação do gesto) e o próprio tempo da sua formação: esta coincide com a formação do tempo. (GIL, 2009, p.159).
Eis uma precisa e poética descrição de Trio A. Movimento e tempo parecem formar um ao outro e isso se deve, segundo Rainer, ao investimento energético com que se realizam os fraseados. Nos quatro minutos e meio em que a partitura se desdobra percebe-se "uma continuidade de movimento de 'fundo' (found movements) sem interrupções, sem clímax e sem variações no 'fraseado' cujo 'tom' deve continuar sempre o mesmo, neutro e impessoal (the smoothness of the continuity)". (GIL, 2009, p.159. Grifos do autor).
Tudo isso gera no espectador a sensação de que o bailarino é um fazedor de ações, que age ininterruptamente e que aquela partitura, apesar de simples, tem algo de incomum. A simplicidade do espaço, das roupas da bailarina e dos gestos realizados saltam aos olhos numa estranha importância. Essa sensação é chamada por José Gil de uma irrupção do real. O real não diz respeito ao ordinário, ao comum, pelo contrário. É aquilo que salta aos olhos se distinguindo da realidade, abrindo um vórtice de possíveis frente as relações bem estabelecidas com as coisas. A realidade encobre o real e quando esse emerge por descontinuidades no curso de seus hábitos, produz mudanças profundas nos corpos, no espaço e no tempo. O corpo é material, concreto e passa a se relacionar com o que está ao redor de modo imediato. De súbito tudo faz sentido, mesmo que nada se explique claramente.
O tempo objetivo, o tempo da realidade das coisas e dos outros, o tempo das instituições e do trabalho deixam de se impor. A defasagem entre o exterior e o interior desaparece. Agora, os meus gestos ritmam e tecem um tempo presente em que a minha ação e o meu pensamento coincidem, e ambos se ajustam aos ritmos coletivos. (GIL, 2009, p.155).
Gil se utiliza da imagem da fita de Möbius para exemplificar o funcionamento do corpo em estado real. Do corpo "que se forma à medida que absorve [...] as forças de afeto do interior e as faz circular pela superfície" (GIL, 2009, p. 64) e da mesma forma faz os estímulos e ritmos coletivos da superfície circularem modificando os afetos. Esse corpo se forma por relações de contágio com o que está por toda a parte, de forma cumulativa, produzindo sentidos por vizinhança e assumindo uma economia energética característica da coexistência intensiva, ou seja, das circulação permanente de afetos. Tal economia, por ser de intensidades, lida com altas energias, altas velocidades e produção de diferenças. Será que o atletismo das emoções lida com as mesmas características? Será que o ator, enquanto atleta das emoções, pode produzir para si esse corpo em estado real? O Rasaboxes pode ser produtor desse corpo, desse real de que fala Gil?

[1] Rainer (1934 - ) é bailarina, coreógrafa, performer, roteirista e diretora de cinema. Foi uma das fundadoras da Judson Church Theater e teve Ann Halprin e Merce Cunningham como professores. Trio A e B (The Mind is a Muscle) e At My Body's House são algumas de suas principais obras em dança ainda nos anos 60. Desde 2005 é professora emérita da Universidade da Califórnia. Disponível em: http://www.fondation-langlois.org/html/e/page.php?NumPage=1870 no dia 12/10/2014.
[2] Merce Cunningham trazia para o cenário da dança norte-americana propostas extremamente ousadas em termos de linguagem, mas seu impacto se resumiu a esfera da arte, não levando adiante as consequências sociais e políticas de suas propostas estéticas, o que alimentou um movimento ainda mais radical de coreógrafos e bailarinos, que pretendiam realizar as mudanças que Cunningham não realizou. (ver GIL, 2009, p.150)