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Em 11 de julho de 1931:

 

Isso que eu sempre concebi como um tipo de impermeabilidade do mundo cênico a tudo o que não é estritamente ele mesmo, como a quase inutilidade da palavra que não é mais o veículo, mas o ponto de sutura do pensamento [...], como a necessidade para o teatro de buscar representar alguns lados estranhos das construções do inconsciente, [...] tudo isso é preenchido, satisfeito, representado, e muito mais pelas surpreendentes realizações do teatro balinês que é uma bela dinamite [camouflet] no teatro tal como nós o concebemos. (Artaud, 2006,  p. 1733).

           

Um Atletismo Afetivo (1999, p.151-160) tem sua genealogia a partir dessas palavras a Louis Jouvet. É nesse dia que Artaud vê, pela primeira vez, o Gamelan Peliatan, companhia de espetáculos de Bali, na Exposição Colonial de Paris. Os anos seguintes, até 1936, são de intensa produção literária e publicação de artigos que, mais tarde comporiam a coletânea O Teatro e seu Duplo e definiriam a estética do Teatro da Crueldade.

 

O teatro balinês mostrou a Artaud naquela ocasião a "intensa força comunicativa nos códigos não-verbais." (QUILICI, 2004, p. 118) e um rigor extremo para realizá-los. Misturado ao exotismo da experiência,

 

Artaud tenta apreender nesse jogo entre caos e ordem uma espécie de princípio ordenador, que nos lança em meio a um enxame de signos e estímulos no qual nos sentimos perdidos, mas que também nos faz pressentir a existência de um rigor quase matemático na construção da encenação, de uma "intelectualidade" imanente ao aparente caos. (QUILICI, 2004, p. 118).

 

Esse 'rigor quase matemático', essa 'intelectualidade imanente', inspiram Artaud a investigar a artificialidade presente no jogo cênico visto no palco balinês. A inumanidade das figuras com seus figurinos e gestos, a dramaturgia menos interessada em apresentar conflitos e mais em fazer desfilar um corolário de signos míticos; a música que, não se sabe se acompanha o gesto, ou se é acompanhada por aquele e que impregna tudo com suas oscilações sutis. Tudo isso impulsiona a construção de um pensamento estético baseado na convenção teatral como mecanismo intensificador da experiência do próprio viver, que ator e plateia devem experienciar no teatro. A convenção e a artificialidade exigem treino, pois reconstroem o organismo do ator a partir de um treinamento meticuloso.

 

Artaud constitui uma constelação conceitual com os artigos A Encenação e a Metafísica, O Teatro Alquímico, O Teatro e a Peste, os dois manifestos do Teatro da Crueldade, mas é com os artigos O Teatro de Séraphin e Um Atletismo Afetivo que Artaud se dedica a pensar unicamente no ofício do ator. No primeiro, Artaud descreve uma guerra de forças internas para fazer surgir um grito. "Quero experimentar um feminino terrível. O grito da revolta pisoteada, da angústia armada em guerra e da reivindicação" (1999, p.167). Artaud descreve um embate entre as forças masculinas, femininas e neutras guardadas em sua própria fisiologia. Os gritos se dão na investigação da respiração de cada uma dessas forças.

 

Tal investigação dissocia o grito de sua expressão externa. "É no ventre que a respiração desce e cria seu vazio de onde volta a arremessá-lo para o alto dos pulmões." (ARTAUD, 1999, p.168). Os percursos fisiológicos revelam aproximações com os órgãos, pontos e nós nervosos que mais tarde serão associados à Cabala e à Acupuntura em Um Atletismo Afetivo. "Toda emoção tem bases orgânicas. É cultivando sua emoção em seu corpo que o ator recarrega sua densidade voltaica. Saber antecipadamente que pontos do corpo é preciso tocar significa jogar o espectador nos transes mágicos." (ARTAUD,1999, p.172).

 

Artaud se deterá sobre esses pontos no texto Um Atletismo Afetivo e traçará alguns princípios gerais para o trabalho do ator. O primeiro deles é "que o campo do ator é o dos 'afetos', e que o modo de se lidar com as emoções deve ser 'físico', 'plástico', e não psicológico." (QUILICI, 2004, p.137). Este campo, quando bem esculpido, deve ter o poder de afetar o espectador, ou seja, é algo produzido pelo ator e para o ator, mas também e fundamentalmente é produzido para o espectador. Desse modo o público é convocado organicamente, tendo sua fisiologia implicada, na construção da obra cênica. Isso leva ao segundo princípio.

 

Artaud vislumbra a existência de um organismo afetivo que seria um duplo do organismo físico do atleta. Tal organismo deve ser investigado e manipulado a partir do treinamento respiratório. "É a relação entre afeto e corpo que lhe interessa focalizar, ou melhor, trata-se de localizar o ponto de encontro entre os dois." (QULICI, 2004, p.138). E esse ponto é a respiração. É pela respiração que o ator controla seu ritmo orgânico e modula as intensidades afetivas que deseja lançar ao espectador como um "verdadeiro curandeiro". (ARTAUD, 1999, p.154). Pela ação precisa do ator/curandeiro, o espectador é afetado e convidado a investigar sua própria produção afetiva.

 

As modulações respiratórias são classificadas em três modos básicos: masculino, feminino e neutro. O masculino é ativo, energético; o feminino é passivo, pesado; e o neutro é andrógino, equilibrado e suspenso. Aparentemente todos os afetos contêm essas qualidades em alguma medida e poderiam ser classificados como combinações desses três modos, formando seis tipos principais de ritmos respiratórios[1].

 

O importante é tomar consciência dessas localizações do pensamento afetivo. Um meio de reconhecimento é o esforço; e os mesmos pontos sobre os quais incide o esforço físico são aqueles sobre os quais incide a emanação do pensamento afetivo. (ARTAUD, 1999, p.157).

 

A citação explicita uma característica do organismo afetivo que é a produção de pensamento afetivo através do esforço. O ator reconhece os pontos onde os esforços físico-afetivos se concentram e é dali que emana o pensamento afetivo, não apenas como uma manifestação intelectual, e sim como a corporificação estudada da emoção. Assim como o atleta treina à exaustão uma série de grupos musculares para realizar com eficiência o gesto esportivo, o ator treina seu corpo afetivo, através do estudo dos esforços físico-afetivos (mapeados segundo Artaud por técnicas orientais como a Cabala e a Acupuntura), para realizar pensamentos afetivos que recoloquem o espectador dentro da "cadeia mágica" (ARTAUD, 1999, p. 160) que é o teatro. E ao contrário do esforço atlético, que visa a realização mecânica e mesmo intuitiva do gesto, o esforço físico-afetivo deve ser modulado conscientemente, de acordo com as relações da cena.

 

Todas essas questões envolvendo esforço, corporificação e pensamentos afetivos foram cruciais para os projetos teatrais de Artaud e também o são para o desenvolvimento conceitual do Rasaboxes e deste trabalho, sendo retomadas em Angambox - Caixa de corpos e em Sabdabox - Caixa de palavras.

[1]  As seis combinações principais de respirações são: neutro, masculino, feminino / neutro, feminino, masculino/ masculino, neutro, feminino / feminino, neutro, masculino / masculino, feminino, neutro / feminino, masculino, neutro. (ver ARTAUD, 1999, p. 156).

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